Thursday, October 14, 2004

Retrospectiva, parte 1 - Centro

Alguns esclarecimentos:
Postarei alguns textos antigos que considero importantes, ou porque se destacaram, ou porque são bastante representativos de certas épocas da minha vida. Este texto foi o vencedor do primeiro concurso literário do colégio, quando eu estava no segundo ano do ensino médio, porém foi escrito aos catorze anos. Seria hoje mera lembrança ou estigma? Eis aqui...

Centro
Perdi. Nenhuma calçada alagada sob chuva alguma , nenhuma corrida desesperada rumo a um lugar qualquer fariam com que eu encontrasse. Nem lágrimas. Ou metáforas raras. Estas só costumam resolver casos amorosos e não era esse o tipo de problema. Seria fácil demais. Diante de mim apenas o céu pintado em um quadro. Impressionista. Fora de foco, em borrões que simulavam a miopia proposital, com o único objetivo de ao menos por alguns instantes não enxergar detalhes. Pela janela fechada entrava um fino raio de sol, tão incômodo e desnecessário, porém não conseguia ser desprezível, a janela estava fechada e lá ele continuava, eu queria que o dia morresse e mais um pouco - que a luz se fosse - mas de sua doce insignificância pequenos pontos de pó, levantados pelo filete iluminado, brilhavam.
Como eu, acostumada à minha tipicamente urbana, poderia viver naquele lugar, sufocante em seu limitado espaço, com suas pequenas casas cor de terra e quintais onde cresciam trepadeiras verdes salpicadas de amarelo-ouro, peças de roupa surradas secando no longo varal ao lado... Com suas pessoas tão ordinariamente simples?
A luz não iria embora. Tudo o que eu podia fazer era pegar meu velho par de óculos escuros, de haste preta e grossa, e dar um passeio por aquela medíocre cidadezinha que agora era minha. Saí de minha nova casa velha , que se diferenciava das outras, era maior, por que não mais bonita?, mas velha. Como tudo naquele lugar. Andava por aquelas ruas que alternavam terra batida e paralelpípedos soltos e observava as pessoas, assim como me acostumara a fazer no lugar de onde vim, tão belo em suas nuances de cinza e fumaça. Via aqueles rostos, aquelas corpos, senhoras carolas, moças em suas roupas fora de moda, rapazes com suas bicicletas, homens fumando algo arcaico como suas vidas e , exatamente como naquela lindo e pacífico lugar cinzento, de sons e gases de onde eu vim, comecei a me perguntar sealguma dequelas pessoas poderia algum dia ser especial para mim.
Não. Era a única resposta a ser dada. Eu pretendia continuar sendo a imagem do tédio. Blasé. Cinza. Eu não podia me habituar à vida naquele lugar, sob pena de me tornar semelhante a seus moradores. Não podia gostar , não podia nem queria que minha vida se adequasse à inércia daquela "quase cidade".
Um estranho saudosimo tomou conta de mim naquele momento. Lembrava-me do tempo que tivera para viver. Viver e ruminar planos e idéias que pareciam revolucionários, antiga rotina. Planos e idéias como sempre, nem sempre registrados em papel, nunca transformados em ação. Mas aquilo era a juventude, ter frases e histórias e vida, mesmo que não se tornem realidade. Tudo o que eu queria era poder dizer que vivia, mas rondava a sensação de que aqueles esparsos momentos de sangue correndo nas veias, da mais consciente insanidade, não haviam sidoo bastante.Fora o tempo para começar e terminar, ou, numa hipótese mais otimista, começar e não terminar, porém, o fim de uma etapa tornara-se quase inevitável diante das perpectivas. Expectativas. Agora, realidade. Acabara-se a época de minha última liberdade.
Entrei numa mercearia toda feita de tábuas de madeira e comecei a procurar algo para comer, entre os grãos que dominavam o cenário e combinavam tão bem com aquela cidade de beges e marrons até no clima seco, aqueles tons de terra que predominavamno pequenino estabelecimento, até que finalmente reparei e decidi comprar umas enormes frutas hexagonais e vermelhas que se destacavam . Eu gostava de vermelho, principalmente porque me lembrava um pouco vinho. Vinho tinto, champagne, vodca, cerveja, cinza. Batidas eletrônicas, as luzes piscandoe transformandoo que se passa num quadro-a- quadro, mais precisamente em flashes frenéticos. Estar bêbada. Fumar. Olhos vermelhos. Não ouvir mais a música e continuar dançando e se lembrar que tem vergonha de dançar. Não se importar. Pisar em nuvens. Testar o equilíbrio e estar cambaleante. Olhos inertes. Provar libertação. Eu. Primeira pessoa. Do singular.
Cinza, não marrom.
E os habitantes do bege eram demasiadamente irritantes: bons, gentis e educados, notei que todos me agradeciam por qualquer coisa, até se eu pisasse no pé de alguém - Obrigado por me contar as maravilhas que há no mundo além das grades, obrigado por me deixar saber que existecondicional, obrigado por me garntir que o futuro jamais chegará.
Quando me dirigi ao caixa, olhei para a caixa registradora e me dei conta de que, na verdade, tal objeto deveria ser algum ancestral de caixa registradora. Aquilo me fez pensar que aquela cidade havia, mais do que parado no tempo, voltado alguns anos. Achei melhor levar a fruta para comer em casa. De repente, me dei contade quenão podia comer aquela fruta, que só era consumida lá, por aquelas pessoas, dauqela cidadezinha e eu não queria adquirir seus hábitos. Mas a fruta era suculenta e eu estava com fome. Comi. Só depois me lenbrei que os peixes morrem pela boca, mas já era tarde demais.
Continuei minha caminhada, agora de volta a minha nova casavelha. De repente, uma daquelas senhoras carolas de saia vermelha veio até mim e disse:
- Como a moça enxerga bem, mas pensa demais...
Não me inportei com aquele breve discurso, afinal, auqla pessoa jamais me conheceria, não podia saber sequer se eu pensava e nãopodia ver meus olhos através das lentes escuras, mas... Não passaram cinco minutos e eu grupo de crianças veio novamente elogiar minha visão. Parecia ser a nova atração local, logo eu, que definitivamente não pretendia chamar atenção.
Eu andava sempre con cautela, quanto aos meus atos, quanto às minhas palavras, para continuar rumo ao meu objetivo, continuar como era , sem absorver costumes que não eram os meus. E pelo meu caminho as pessoas continuavam a me dizer para "enxergar, não pensar".
Num outro dia, em uma das minhas inúteis e mesmo perigosas caminhadas, em que sempre corria o risco de me desviar, notei que algo me atrapalhava visão. Seriam as lentes dos óculos ou minha vista que embaçava? Parecia mesmo seram apenas as lentes, pois as limpei e a fina névoa que a encobria saiu. Achei que havia pouca gente nas ruas àquela hora do dia: geralmente havia mais gente fora de casa. Enfim, eu estava apenas conhecendo a rotina daquela cidade. Porém, talvez fosse um conhecimento indesejável, pois me arriscaria a gostar e me acostumar. E isso eu não queria.
Desde aquele dia, freqüentemente as lentes embaçavam e as tentativas dos habitantes daquela cidade de elogiar minha visãoaumentavam. E cada vez mais criticavam meus pensamentos. Como podiam criticar algo que não conheciam? O que ou a quem o meu pensar incomodava, e por quê? Não suportava tamanha ignorância... Tentavam me agradar de uma maneira que se tornava insuportável.
Eu tinha sempre que tirar os óculos para limpar, mas não desistia de usá-los, gostava deles. Comecei a achar que as pessoas daquela cidade estavam saindo menos de casa, o número de pessoas nas ruas parecia menor, ou será que eu tinha aquela sensação pois não conseguia enxergar direito com os óculos embaçados?
Comecei a notar um certo desespero nas tentativas de agrado e nas críticas, à medida que menos pessoas eu via. Era um tanto engraçado que aquela gente ainda não houvesse percebido que eu não queria ter maiores contstos com seus costumes e tentasse fazer com que eu parasse de pensar. Naquele momento ri bastante, pelo menos havia algo para fazer com que eu realmente não gostasse dali: as pessoas só me diziam a mesma coisa, invariavelmete. Nesse ponto podia dizer que as coisas estavam dando certo.
Até que um dia, uma das moças com roupas fora-de-moda correu em minha direçaõ chorando.
- Por que você pensa tanto?! - e rapidamente saiu da minha frente.
Aquilo me deixou um tanto aflita pela aparente raiva com que aquelas palavras foram ditas. Devo ter ficado meio atordoada com aquele fato, tão repentino, tanto que meus óculos caíram no chão, aquele mesmo chão barrento e cheio de paralelepípedos soltos, estes que me fizeram tropeçar e quase me estatelar naquela lame, destino do qual não escapou meu velho par de óculos. Foi aí que percebi que não eram apenas as lentes dos óculos, mas a minha vista estava embaçada, eu não conseguia enxergar direito e não podia fazer nada para mudar a situação.
Desorientada, cheguei a um lugar em que nunca estivera, que eu não conhecia de fotos, tão diferente. Seria ressaca ou tempestade? Talvez estivesse demasiado exaltada para definir. Fora apenas água sobre mim, privando-me de meus sentidos, fazendo-me quase morta, e depois um espírito letárgico, consciente, uma consciência pálida que apenas me tornava distante do mundo. Mas as águasque me sufocavam e arrastavam minhas forças em turbilhão apenas esverdeavam os doces campos interioranos e tronavam esplendorosa a dourada palha ordinária, que alimenta o fogo que a própria água apaga, a mesma água escra que lutava contra minha mente e meu corpo e devia ser produzida mesmo que me tirasse a vida, e assim dormi sobre a palha campestre.
E então estava eu outra vez em minha nova casa velha, onde conseguia ver tudo muito bem, as memórias de meu querido lugar cinzento, de minha origem. Abri a porta. Saí. E naõ vi mais ninguém na pequena quase cidade, mas podia sentir sua presença. Uma alegria da qual eu não podia participar, naquela medíocre cidadezinha que agora era minha.
Perdi?