Friday, October 15, 2004

Estado de graça

Acariciou a barriga e acendeu um cigarro. Sempre escondera que fumava e agora mais ainda - tal ato passara do apenas incômodo ao imoral (embora assim houvesse acentuado-se o gosto açucarado da transgressão). Mas precisava dar um pouco de glamour a essa sua imagem. Se bem que, pensava melhor, continuaria a parecer personagem de fotos americanas da Grande Depressão. O vestido de chita, sua posição, refastelada numa poltrona velha com os pés descalços no parapeito da janela e, sobretudo, o volume no abdômen não deixavam outra opção. Mais do que nunca, presa, pesada, patética. E lembrou-se dos motivos totalmente egoístas que a levaram àquele estado. Seria um vínculo irrevogável com aquele que amava. Ele estaria sempre a rondar ( ela, definitivamente, não confiava no próprio taco, por mais que ele jurasse para Ela e para todos a cada dia , ligasse dez vezes para saber o estado d´Ela, e não do que carregava, a comesse de bom grado mesmo com seus braços e pernas roliços e ventre proeminente). Pensou em como ela, mãe, irmã, amigas criticavam as moças pobres ( gente de baixo nível, coitadas ) que embuchavam para segurar seus homens. Porque o único objetivo delas era ter um homem - ao qual se referiam carinhosa e singelamente como "meu esposo". Um leve sorriso sarcástico tomou-lhe o canto da boca. Os olhos continuavam fixos. Somente perturbados por esporádicas piscadas involuntárias. Deu ainda um trago antes que o telefone tocasse. Pela décima vez. Para atendê-lo, deveria deixar a cômoda posição e o cômodo abafado e assim o fez, em dois passos.
Pela janela.