Wednesday, August 16, 2006

Primeiro capítulo

É só dar dez passos, afastar algumas roupas, pegar do jeito certo e botar na boca. Sentir o geladinho nos lábios, o azedo na língua. Como se fosse chupar a bala. Direto no bulbo cerebral, nem dá para sentir dor. Definitivamente é confortante pensar nisso, dá uma paz imensa e consigo voltar a dormir, dormir. Aí meio que desperto e lembro aquele sono. So-no, não sonho. Não sei se foi culpa do remedinho, era natural. Era quase meio-dia e eu tentava acordar e não conseguia, não, não era aquela preguiça normal, cansaço, fadiga, ressaca que te impede de levantar para trabalhar duas horas depois de ter enchido a cara de cachaça vagabunda numa noitada. Mais como desmaios em série. Com cerca de dez horas de sono, tentava abrir os olhos e alguma espécie de força me cerrava as pestanas, me atirava num estágio profundo de semi ou in consciência, não sei exatamente o quê, para mim a linha é tênue, muito tênue. Eu lutava bravamente, tentava descerrar as pálpebras e focar a reprodução de Miró na parede. Lá pela décima tentativa sei lá quanto tempo depois, consegui voltar à órbita. Será que é assim? Será que é assim que acontece? Se eu não quisesse acordar, com certeza teria sido uma sensação bastante agradável. Mas naquele dia eu queria acordar, e foi estranho e tal grau de estranheza só me sobreveio depois de alguns dias, quando confortei-me ao pensar no gelado, no azedo. Foi aí que as duas sensações me pareceram complementares, seqüenciais. Também já substitui a bala, azedo, gelado pela corda no pescoço, mas essa opção parece por demais trabalhosa e passível de falha. Onde se pendurar? Mas o momento agora pede prazeres mais ordinários. É meio-dia e estou plenamente acordada. Meu cigarro sumiu na bolsa. Papéis, isqueiro, chaves de casa, documentos, celular, dez reais. Nado do cigarro Perdi? Perdi. Na bolsa, a bolsa. No Rio de Janeiro, quando você perde, é na nuca, meio de lado, direto no bulbo, você quase não sente dor. Quase, e não é confortante, há meio segundo de desespero.

Ela caiu em cima de mim, me encharcou. Multidão de curiosos, e eu lá, com aquela cabeça sangrando na minha mão, pedaços de cérebro, eu acho, meio Jackie Kennedy, dizem que quando mataram o JFK ele caiu sobre ela com pedaços de cérebro escorrendo pelo tailleurzinho elegante de primeira-dama, que, a bem refletir, pode ser encarado como um uniforme, bem mais caro, chique e bonito que o meu, mas ainda assim um uniforme. Bombeiros, polícia, rabecão. Você viu, moreno, cerca de vinte anos, magro, um e setenta, cabeça raspada, deve ser do Cantagalo, Pavão, sei lá... qualquer coisa, ligue para a gente. Cinco horas depois, meu uniforme continuava todo sujo de sangue e com uns fios louros enrolados, bem compridos. Antes que pudesse cruzar a porta da garagem, dona Laura e seu Coimbra, tiveram, era óbvio, quem era eu para pensar que pudesse ser diferente, que travar meu caminho e interrogar detalhes do ocorrido. Menina moça, coitadinha, quantos anos, uns vinte e cinco, era bonita como disseram?, era, era, loura, cabelos cacheados, como eu ia dizer praqueles dois que quando uma criatura ensangüentada, mor-ta, cai de repente sobre você, é impossível discernir ao certo o que aconteceu e quando o tiro é na cabeça, você só se sente no meio de um monte de gosma e diante de um rosto desfigurado pelo ferimento e pelos processos naturais provenientes deste? Mas sejamos agradáveis, compartilhemos os detalhes sórdidos que farão o dia dos anciãos. É uma boa ação, mais um passo no caminho do céu, agitar um pouco a vidinha deles com um caso que só aparecerá nos jornais espreme-que-sai-sangue no dia seguinte. O pior é que em recompensa por esta caridade só um onde-vamos-parar-meu-deus, nunca um chazinho de camomila, ou deixa que eu lavo seu uniforme. Enfim, livre da obrigação, que deus me abençoe, pude finalmente seguir para meus aposentos. Nos fundos da garagem, um cômodo de dez metros quadrados com banheiro. Tomo banho, água sem pressão. Esfrego bem, tirando do braço as placas de sangue. Água fria na cabeça para curar essa ressaca avermelhada. Ninguém para lavar minha camisa, mesmo com tantas velhas desocupadas no edifício. Deve ser porque não sou digno de pena, isso fica para jovens louras que caem sangrando sobre os outros. Esfrego bem. A água segue rosada para o ralo, alguns restos da morta seguem seu caminho para o esgoto. Enquanto ninguém chega ou sai posso lidar com a sujeira mais entranhada, posso lavar a camisa do uniforme. Antes bege agora vermelha. Esfrego bem, a água não vai rosada, mas vermelho vivo, menos um pouco dela diante da visão dos vivos. Foda-se. Ninguém tem o direito de me sujar dessa forma: tanto e tão difícil de limpar. Esfrego mais, com sabão de coco e escova e as manchas persistem. Deixo de molho no tanque da garagem. Uma poça vermelha. Da cor da minha camisa. Não o uniforme, a que agora vestia em meus aposentos. Em prédio de velhos não há movimento noturno e minha jornada vai até as oito. Mereço uma camisa de seda vermelha após um dia como este. Mangas longas soltas e abotoadura de madrepérola. Duas borrifadas de colônia no pescoço, o cordão dourado. Agora é minha vez de lançar substâncias fisiológicas sobre os outros e não são miolos, sangue só por acidente.

Ainda vejo tudo. Isso dura enquanto partes minhas ainda conviverem com vocês por aí. Esqueci de avisar, minha família tem costas quentes, foi de manhã, e à noite os vermes já se deleitam com a maior parte do meu corpo, a sete palmos. Até restarem só os ossinhos. Pois é, até comerem tudo, tenho noção do que acontece por aí. Evidentemente não há muita ação dentro de um esquife. (Os cremados, ao que parece, se desligam mais rápido, não sobra muito o quê se decompor; as múmias devem conhecer gerações de arqueólogos e mercenários; enterros com o caixão aberto são filmes kitsch) Não me perguntem sobre perucas, umbigos e unhas que sobram por aí, não sei bem o que acontece, qual é o processo obedecido. O fato é que o rapaz da portaria até tentou esfregar bem, olhou no espelho, mas sobrou uma pequeno tufo de cabelos, sangue e miolos meus em seu peito, que podem ser vistos por essa camisa entreaberta. Parece uma verruga cabeluda de tamanho médio. Estranho esse rapaz, não ter notado... Rapaz é bondade, deve ter uns quarenta anos. Magreza um pouco flácida. Cabelo oleoso, poucas rugas, rosto ossudo, vi pelo espelho. E o banho. Decerto foi um alívio cômico-erótico para uma morta caloura. Jamais imaginara participar do banho de um homem desse jeito. Sem interação. Sem punheta ou boquete ou tentativa de (ou de fato) penetração. E no entanto, grudada, literalmente, nele. Só vi retraído. Pois bem, realmente minha consciência tornou-se uma verruga.