Friday, February 24, 2006

De Simone de Beauvoir à garçonnière do primeiro andar

Tinha até escolhido uma calcinha nova. Rosa com renda preta (e raspado o conteúdo bem curtinho, do jeito que você gosta). Duas borrifadas de perfume importado de manhã, quase enjoada do próprio cheiro – ainda bem que o meu perfume não gruda no nariz como o seu. Mas às vezes o primeiro andar parece o último, edifício sete torres de vinte estágios no mínimo. Menos mal, assim você não veria que estou mais gordinha – aliás, saudades dos tempos em que esse tipo de rendez-vous tinha por conseqüência uma semana de vômitos, o que mantinha minha admirada magreza. Então eu tinha 14 anos, hoje não posso passar dos 50 quilos – não diga que não se importa, eu sei que você criticaria. E além do mais, fico horrível suada.
Pelo menos pude manter minha dignidade besta. Por isso as lágrimas entalaram nas três vezes em que quase chorei. Seu orgulho desnecessário. Minha visão turva – sem figuras de linguagem – diante da visão delas. No primeiro andar.

Um livro. L. diz a A , após uma ano de expectativas e supostos amores alimentados com comprimidos de ferro – só feijão não garantia – “eu não te amo mais. Mas quis que você viesse porque queria sua companhia”. Ela não mantém sua dignidade besta . Ela não vai embora. Fica até o final do período combinado. Na mesma cama queen size – Estados Unidos, afinal de contas – sem toques. Apenas uma trepada violenta porque ele sentiu pena. Ele tivera outras. Era o mesmo disco de jazz na vitrola. Que elas também teriam ouvido. Mas, ele garantia, só com ela fora... não era mais
Qualquer história de amor por mim contada soa piegas. Totalmente ficcional. Não-ficção é para rapazes orgulhosos.

Acordou de madrugada com a boca seca, de bebida ou impossibilidade. Porque as roupas no chão do quarto não foram, eram ou seriam dela. Na verdade, o susto viera antes da boca seca, imaginara um toque de telefone, uma queda de escada, pesadelos recorrentes que nem Freud explica.
Chegou a atender atordoada e não era ninguém. Mas a boca estava seca, acompanhando seus lábios rachados e não havia água que desse jeito. Seca, não da bebedeira ou da ressaca. Seca porque não soubera sorver enquanto era tempo. Mesmo que este tivesse se esgotado há anos ou duas, três horas. Não havia diferença. Algumas coisas ficariam perdidas no fundo do poço. Porque ele se contradizia, inflava o peito, jogava migalhas e ela serenamente aceitava. Como quando ainda era tempo.
Seca de impossibilidade e impotência. Mas nunca na vida, sequer aos 12 anos, tocara seus lábios rachados nos de alguém inocentemente.
E isso parecia uma impossibilidade para uma mulher velha e gasta, já capaz de detectar rugas e cabelos brancos no espelho quebrado.
Feliz ou infelizmente, provara-se o contrário. Fora fato (quase?) consumado.

Dez anos antes, ela escolhera uma calcinha nova, rosa com renda preta, para que 37 jovens, dentre as quais ela não se incluíra, estivessem deitadas nuas na cama do quarto do primeiro andar.