Monday, January 29, 2007

Ponto de vista

Em terra de cego quem tem dois olhos, ainda que, e principalmente por serem, míopes, cai do cavalo. Visto que não enxerga bem, mas tampouco, como cego de fato, possui os outros sentidos apurados. Cai do cavalo e cai no poço, escondido pela grama alta, no meio do caminho. Os pés são incapazes de cautela, de tatear. Ainda pode ser intoxicado por gás.

Tento escrita automática como fosse novidade. Há muito defasada.

Primeiro vem a sabotagem do corpo. A barriga gorda. O cabelo sem tinta. A unha lascada. Olhos sujos. Dentro, fora, na superfície. Nas cavidades derredor. Os pêlos compridos e escuros. Os dentes amarelados. Cheiro indelével de cigarro. Pele áspera. As pernas varicosas e flácidas. Feridinhas cheias de pus. Nenhum corpo é fechado.
Sempre há algo pronto a penetrar.
Sempre há um buraco pronto a receber.
Sempre líquidos, ou quase, a transbordar.
“Como ela era linda, linda.”
— Faça-me mudar de idéia.
Há sempre um buraco a penetrar, sorte a dele. Há sempre líquidos a escorrer.
— Diga algo mais.
— Digo.
Primeiro vem a sabotagem do corpo e depois foram felizes para sempre.